Para minha
grande surpresa e apesar de tudo, os piores temores não se confirmavam: o fígado
aguentava bem e nos primeiros tempos não se verificaram turbulências melodramáticas
ou crises existenciais de espécie alguma. Tínhamos as nossas diferenças, claro
está: ela pedalava numa vintage pedaleira que fora herdada e eu numa estradista
comprada em grande superfície; a miúda marimbava-se prás afinações, mas eu oleava a corrente
de transmissão servindo-me, para aprimorar, duma velha escova de dentes; ela
descia as colinas de Lisboa desalmadamente e eu borrava-me com os carris do Eléctrico. Já
para não falar das macieiras!! A rapariga da biciclete vermelha impunha a
pedalada e eu acabava de gatas.
E todavia, havia
uma química entre nós: éramos capazes de beber horas e horas seguidas, polemizando
amistosamente sobre tudo e sobre nada: “compositores românticos ou barrocos?”,
“poesia surrealista ou lírica trovadoresca?”... “capacete, sim ou não?”. Podem
bem imaginar quem é que nem sequer reflectores levava por libertário desleixo...
não?
Ela marcava o
ritmo e eu, embalado plo seu temerário? irreflectido? provocador? exemplo...
deixava-me ir na esteira do seu mau comportamento. Quando tergiversava ela
chamava-me “burguês”. E eu todo enrubescido, reclamava protestos tonitroantes que
eram logo amansados, quando ela, com um sorriso rasgado, me acariciava o rosto
e me beijava os olhos, sussurrando-me o conforto de ser o seu exclusivo alvo de
“terrorismo sentimental”...
Por essa altura
vivíamos de esquemas e éramos felizes: não por acaso, a macieira sempre foi tida
como o uisqui dos pobres, os nossos luxos eram escassos e a combinação ovos +
atum revelava-se surpreendentemente calórica. Tínhamos amor e duas biclas! Mais
o apartamento dum senil avô encurralado num conveniente lar de idosos - o que também
dava um certo jeito... reconheço! Binávamos e fazíamos planos: descer a costa
vicentina, seguir plos caminhos até Santiago... atravessar o mundo em duas
rodas... Mas numa manhã de Maio, o carteiro - tal como no filme - tocou duas
vezes. E o novelo desta estória começou realmente a desenrolar-se..
E precipitou-se porque
a rapariga da biciclete vermelha não deixara de ser quem era: uma virtuosa pianista!
E se há certos talentos que se podem conservar indolentes no torpor dos dias
sem definido horizonte... eis que basta algo ou alguém vir agitar a campânula dum
exílio forçado, para que todo o talento criador latente se transfigure em viva e
indomável força criadora!
É certo! Como já
podem ir calculando, as minhas inseguranças viriam a jogar um papel não despiciente... mas como poderia ser de outra forma se ela era uma virtuosa
pianista e eu não passava dum pobre poeta de maus versos...? Quando a carta chegou e as boas novas foram
por ela lidas com emoção e júbilo, decidimos logo e ali mesmo despejar uma
garrafa de macieira a meias, fruindo felizes e em pleno contentamento, mas
agora... agora esvazio uma garrafa a sós, enquanto escrevo inconsolável estas
linhas plenas de saudade, com a mais negra tinta da auto-comiseração...
À rapariga da
biciclete vermelha, capaz dos mais rendilhados prodígios teclados num piano, os
antigos mestres lançavam-lhe de novo a mão... a ela que, desde certo incidente
protocolar com a Primeira-dama, se julgava (irremediavelmente?) caída em
desgraça.
Nesses tempos
ela não bebia... ou não bebia tanto, plo menos...! Mas não usarei de eufemismo, nem
meias verdades, pois o que de seguida irei relatar, mais palavra, menos
pontuação, é nem mais nem menos o terrível episódio que a lançara (a ela,
virtuosa pianista!) numa espiral de auto-destruição...
Estava agendado
um banalíssimo concerto de câmara como tantos outros haviam sido anunciados antes mas,
para espanto geral, para aquela específica actuação iria estar presente a
Primeira-dama! E de súbito, a ansiedade apertou… apertou muito até ao dia do
concerto.
Naquele que viria a revelar-se um fatídico dia, a rapariga da
biciclete vermelha comera uns rissóis para acompanhar as macieiras que despejara
para ganhar nervo e entrar em palco. Sentia-se um pouco indisposta mas
aguentou-se bem. Só quando no fim do concerto foi cumprimentar a Cavaca é que o
drama se precipitou... Talvez porque ela não se sentisse tão forte no cravo
como no piano, ou talvez porque os rissóis estivessem estragados ou as macieiras
houvessem sido realmente demais pela vez primeira… O que é certo é que ao invés
da rapariga da biciclete vermelha, no fim do concerto, declarar respeitosamente
“foi um prazer dar-lhe Bach”... simplesmente acabou por vomitar cá para fora um
grande “baargh!” – salpicando com as suas entranhas e aquela espécie de bucha
que tomara antes da actuação, o pindérico mas igualmente caríssimo vestido
azul-turquesa da Primeira-dama. Foi um escândalo e um “ai Jesus!”, a virtuosa pianista
tresandava a álcool e a Cavaca não foi de modas (nunca o fora, de facto!):
mexeu os cordelinhos e saneou-a.
Saneou-a até àquele dia em que o carteiro tocou duas vezes, deixando uma carta com a promessa do fim dum pesado pesadelo...
Ou talvez não! Porque a rapariga da biciclete vermelha iria ter de prestar provas
da sua reabilitação com uma suite de Rachmaninoff... E a música para piano de Rachmaninoff
meus amigos... a música para piano de Rachmaninoff tinha a sinistra e lendária reputação de afectar o sistema nervoso às senhoras – como de
resto, aliás! iríamos experimentar na carne...
2 comentários:
É um prazer ler o que para aqui vai.
Gd Ab,
Muito te agradeço o elogio.
Muito mais gostaria que a miúda que idolatro e me traz o coração preso se comovesse um nadinha de nada que fosse... É pra ela que escrevo, mas a única para quem escrevo... plos vistos continua sem nem querer saber.
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