Claro que na
manhã seguinte, quando a bebedeira se evaporava, nos sentimos pesadamente
constrangidos. Convinha naturalmente pousar um certo pudor, mas ela então...
ui! Ela então, estava superlativamente arrependidíssima!
“Não, isto não
pode ser! Isto é um erro, uma catástrofe que se abate, uma terrível blasfémia
na qual incorremos” – dizia-me – “onde já se viu uma colaboração artística
acabar na cama? “
“Bem..." –
retorqui eu – “só com o pianista Mário Laginha e a cantora Maria João, os
escritores Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre, os pintores Diego Rivera e
Frida kahlo, os ladrões Bonnie and Clyde, o Zé Pedro dos Xutos e a Xana dos
Rádio Macau… queres mesmo que continue?”
“Mas Não! Não e
não!” – replicava a rapariga da biciclete vermelha – Tu só me conheces
superificalmente: não sabes como sou.... aliás! Ninguém sabe de facto! Não sou
a tua terra prometida das vinhas e do mel e nada poderá florir no fel em que eu…
oh cruz, credo e canhoto!!! Não percebes que apenas te posso tornar infeliz? Que
sou maldita e a todos envolvo na minha queda? Que nada pode ganhar raízes e
medrar? Pára! Afasta-te antes que seja tarde também para ti e caias arrastado
nos alcoólicos abismos onde me refugiei eu. Vai, vai-te embora. Afasta-te! Esquece-me
enquanto há tempo!"
“Não digas isso!”
– pedia-lhe eu.
“Não digas mais nada,
tu!” – insistia ela - “A rapariga da biciclete vermelha não existe. É pura
ficção! Não há aqui nenhuma rapariga da biciclete vermelha! Há uma rapariga e
há uma biciclete, tudo bem! Mas tudo o mais não passa duma associação delirante
de ideias soltas e factos aleatórios: tudo não passa duma personagem literária
que criaste num acesso de imaginação descontrolada! Diante de ti... bolas! Queres
mesmo que te diga a verdade?!? Diante de ti tens uma bêbada quimera... isso
mesmo: uma miragem sem nexo com a realidade concreta, uma ilusão que provarás
amarga, alguém que só te pode magoar, pá! ...Mas que cabeça dura, a tua! Será
que não entendes?”
Ela bem me pôs
de sobreaviso, verdade seja dita. Mas eu estava caidinho, que querem?
Finalmente encontrara uma miúda ainda mais… como dizê-lo sem rastros de
melindre...? finalmente encontrara uma miúda... bem! Uma miúda ainda mais
excêntrica do que eu. Sim! Exactamente: "mais excêntrica do que eu". Caíra seduzido pelos encantos e pelas
sombras dum prometido amor vivido de sonatas e sonetos, nocturnas de Chopin e
versos de Sophia, iluminando serões de ócio e doce contemplação... e tudo alimentado
com panquecas de atum e muita macieira - diga-se de soslaio. Era lindo... Era
lindo, meus amigos, mas não necessariamente para o fígado.
A rapariga
nitidamente fazia género: Andava inquieta para trás e para diante agitando os
braços, dizendo-me “Isto não vai acabar bem. Isto não vai acabar bem” – mas
dizia-o como quem na verdade sugere: “de que estás à espera, tonto? Enlaça-me
nos teus braços e beija-me para lá do oblivium!”
E pesando os prós
e os contras, reflectindo sobre as prováveis dores de alma e as inevitáveis implicações
para o dito fígado, pressenti que talvez não fosse aquela uma situação que devesse
ser ultrapassada simplesmente a shots de macieira. Isolei-me por isso num canto
e fechei os olhos; e enquanto a voz da rapariga da biciclete vermelha se
tornava distante pelo esforço discreto mas disciplinado da meditação que intentava,
o mantra inspirado foi-se transformando numa torrente de ideias e palavras que
ganharam forma e sentido, brotando finalmente em mim o primeiro e quiçá mais belo de todos os
poemas dos quantos te escrevi:
Os teus olhos
espelham,
frementes
como um clarão,
fulgores que
encandeiam
o bom senso e
a razão.
e por vezes
refulgindo
Mistérios que
são teus...
és Gioconda sorrindo
és Gioconda sorrindo
quando me
olhas os meus.
E olhos raros
como são:
como nuvem no
deserto,
como deus
descoberto...!
Atiçam eles o
condão
dos meus
verem senão luz,
nos olhos da minha cruz.
nos olhos da minha cruz.
E depois..? Bom...
depois ela comoveu-se: abrimos nova garrafa, ligámos a aparelhagem e não deverá ser preciso que eu faça um desenho...!
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