sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A ressaca carnal



Claro que na manhã seguinte, quando a bebedeira se evaporava, nos sentimos pesadamente constrangidos. Convinha naturalmente pousar um certo pudor, mas ela então... ui! Ela então, estava superlativamente arrependidíssima!

“Não, isto não pode ser! Isto é um erro, uma catástrofe que se abate, uma terrível blasfémia na qual incorremos” – dizia-me – “onde já se viu uma colaboração artística acabar na cama? “

“Bem..." – retorqui eu – “só com o pianista Mário Laginha e a cantora Maria João, os escritores Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre, os pintores Diego Rivera e Frida kahlo, os ladrões Bonnie and Clyde, o Zé Pedro dos Xutos e a Xana dos Rádio Macau… queres mesmo que continue?”

“Mas Não! Não e não!” – replicava a rapariga da biciclete vermelha – Tu só me conheces superificalmente: não sabes como sou.... aliás! Ninguém sabe de facto! Não sou a tua terra prometida das vinhas e do mel e nada poderá florir no fel em que eu… oh cruz, credo e canhoto!!! Não percebes que apenas te posso tornar infeliz? Que sou maldita e a todos envolvo na minha queda? Que nada pode ganhar raízes e medrar? Pára! Afasta-te antes que seja tarde também para ti e caias arrastado nos alcoólicos abismos onde me refugiei eu. Vai, vai-te embora. Afasta-te! Esquece-me enquanto há tempo!"

“Não digas isso!” – pedia-lhe eu.

“Não digas mais nada, tu!” – insistia ela - “A rapariga da biciclete vermelha não existe. É pura ficção! Não há aqui nenhuma rapariga da biciclete vermelha! Há uma rapariga e há uma biciclete, tudo bem! Mas tudo o mais não passa duma associação delirante de ideias soltas e factos aleatórios: tudo não passa duma personagem literária que criaste num acesso de imaginação descontrolada! Diante de ti... bolas! Queres mesmo que te diga a verdade?!? Diante de ti tens uma bêbada quimera... isso mesmo: uma miragem sem nexo com a realidade concreta, uma ilusão que provarás amarga, alguém que só te pode magoar, pá! ...Mas que cabeça dura, a tua! Será que não entendes?”

Ela bem me pôs de sobreaviso, verdade seja dita. Mas eu estava caidinho, que querem? Finalmente encontrara uma miúda ainda mais… como dizê-lo sem rastros de melindre...? finalmente encontrara uma miúda... bem! Uma miúda ainda mais excêntrica do que eu. Sim! Exactamente: "mais excêntrica do que eu". Caíra seduzido pelos encantos e pelas sombras dum prometido amor vivido de sonatas e sonetos, nocturnas de Chopin e versos de Sophia, iluminando serões de ócio e doce contemplação... e tudo alimentado com panquecas de atum e muita macieira - diga-se de soslaio. Era lindo... Era lindo, meus amigos, mas não necessariamente para o fígado. 

A rapariga nitidamente fazia género: Andava inquieta para trás e para diante agitando os braços, dizendo-me “Isto não vai acabar bem. Isto não vai acabar bem” – mas dizia-o como quem na verdade sugere: “de que estás à espera, tonto? Enlaça-me nos teus braços e beija-me para lá do oblivium!”

E pesando os prós e os contras, reflectindo sobre as prováveis dores de alma e as inevitáveis implicações para o dito fígado, pressenti que talvez não fosse aquela uma situação que devesse ser ultrapassada simplesmente a shots de macieira. Isolei-me por isso num canto e fechei os olhos; e enquanto a voz da rapariga da biciclete vermelha se tornava distante pelo esforço discreto mas disciplinado da meditação que intentava, o mantra inspirado foi-se transformando numa torrente de ideias e palavras que ganharam forma e sentido, brotando finalmente em mim  o primeiro e quiçá mais belo de todos os poemas dos quantos te escrevi:


Os teus olhos espelham,
frementes como um clarão,
fulgores que encandeiam
o bom senso e a razão.

e por vezes refulgindo
Mistérios que são teus...
és Gioconda sorrindo
quando me olhas os meus.

E olhos raros como são:
como nuvem no deserto,
como deus descoberto...!

Atiçam eles o condão
dos meus verem senão luz,
nos olhos da minha cruz.

E depois..? Bom... depois ela comoveu-se: abrimos nova garrafa, ligámos a aparelhagem e não deverá ser preciso que eu faça um desenho...!


1 comentário:

Anónimo disse...
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