terça-feira, 22 de janeiro de 2013

A cena da porrada!


6ª partitura

Até que a poucos dias da prova, resolveu a rapariga da biciclete vermelha dedicar-se exclusivamente àquele trecho. Foram horas e horas sempre às voltas com a passagem mais desafiadora... e horas e horas se foram em vã provação: findou-se o dia e a noite veio mas ela, dominada por uma febril e perfeccionista obsessão, prosseguia incansável e impetuosamente teclando sem cessar. E sempre e sempre teimava:  “falha-me o dedo mindinho no dó em semi-fusa”...

Impacientava-se já e pôs-se a beber uns copos para ver se acalmava os nervos. Qual quê! Começaram os dedos a falhar mais teclas. E ela naquele diabólico teclar: falhava o dó em semi-fusa e bebia um shot. Tentava de novo e falhava outra vez...? bota-abaixo mais uma rodada! Deveras comecei a tornar-me apreensivo. Hesitava porém em intervir, mas foi ela própria quem se encarregou de rebentar o tom: sem pré-aviso ou notificação alguma, interrompeu a sequência harmoniosa das notas silabadas pelo piano e simplesmente se pôs a bater no teclado com os punhos cerrados em ira.

Ao fim de alguns minutos parou. Fez-se silêncio pela casa e eu escutava agora e apenas o meu coração trotando a todo o galope. Gelara, mal me atrevia a respirar... mas não contive um espirro. Oh meu deus! O que acabara de fazer...? Ela ergueu os olhos e cravejou-os nos meus. Ainda tentei balbuciar qualquer coisa, mas o que quer que pudesse ter querido dizer foi imediatamente submerso pela torrente de insultos que a rapariga da biciclete vermelha despejou impiedosamente sobre mim, servindo-se sem parcimónia e com bastante suculência de todo o radical jargão feminista que tinha à sua disposição para me injuriar...

Mas até quando terei que ser oprimida pela tua superficialidade pequeno-burguesa, meu pequeno cabrão?” -  A esta abertura sinfónica seguiu-se mais uma longa espiral de invectivas que prefiro (por pudor) nem sequer relatar... mas como não lhe desse resposta, ela também não perdeu a deixa e não perdi eu pela demora:

Nem muges, nem tuges! Caladinho que nem um rato,não é? E enquanto me degrado musicalmente dum modo que a tua ignorância jamais, ouviste bem? Jamais poderá compreender ou suspeitar... que fazes tu, minha grande besta...? Nada! Pior que nada: ficas para aí a rabiscar versitos, é o que sabes fazer. Ou melhor! Aquilo que gostarias de conseguir talvez um dia... Poeta... ahahahahah. poeta de maus versos, só pode! Pois onde já se viu nos dias de hoje a poesia rimar...? Por favor, não me faças rir… que isto não está para risos, nem para bacocos lirismos de algibeira! Pois enquanto me afundo, cai comigo e atrelado em mim um peso-morto do tamanho... do tamanho... mas que importam pormenores? Um peso-morto? Não! Pior que um fardo! Foda-se! As palavras aí estão para serem usadas: há alturas em que és pior que um estafermo e vejo somente em ti um porco escarafunchando na lama em que me atolo, revolvendo-se nos restos de uma fantasia desenxabida e alimentando-se com a minha demência, decadência e desventura! Ah credo! Até quando vou permitir este vexame, esta contínua e quotidiana humilhação às mãos duma espécie de Oscar Wilde das bicicletes wanna be?”

E como eu nada respondesse... Ela, enfurecendo-se mais ainda, começou a vibrar a sentença como se de um chicote se tratasse... “A culpa é tua, estás a ouvir? A culpa é toda tua, toda tua, toda tua. Toda tua!” - Estava agora nitidamente perturbada, agitava-se muito e espumava já da boca quando se lançou a mim. Na minha inocência ainda julguei que ia ser abraçado. Era bom era! Abraçou-me foi o pescoço - foi o que ela abraçou! - cerrando em torno das minhas goelas os seus longuíssimos e endurecidos dedos de tanto tocar o piano.

A culpa é toda tua, toda tua, toda tua!

Estava possessa, atirou-me ao chão e esmagava-me já o peito com os seus joelhos, enquanto as mãos me estrangulavam o pescoço. “Toda tua! Toda tua!” a minha nuca batia contra o soalho, “a culpa é toda tua!” e os meus olhos turvados viam tudo a dissipar-se quando, de repente... a rapariga da biciclete vermelha se levantou. Sim! Ergueu-se muito alta e muito hirta, e mirando-se os dedos, mirando-me a mim, tornando o olhar para os seus dedos e vendo-me estendido no chão, exclamou enfim extenuada, com a voz toldada de dor: “escreve escriba, escravo da escrita, escreve!” 

E seguidamente...? Bom, a seguir revirou os olhos, caiu redonda e sem outro apelo nem mais agravo, dramaticamente desmaiou em cima de mim.

2 comentários:

Rute Rockabilly disse...

poesia é subtileza meu caro. e este texto é o oposto da subtileza.

"a culpa é toda tua"? que vergonha! projectas na red bike girl o que tu pensas, mas não confessas: "a culpa é toda tua" - dela portanto.

sente-se um machismo latente escorrendo pela tinta ainda fresca destes caracteres com que compuseste um hino à tua misoginia.

É TRISTE, MAS FACTUAL!

um anarco-ciclista disse...

overreaction?!?!