Tinha portanto feito
uma aposta com o Diabo e estava decidido a vencê-la! Meti mãos à obra e comecei
a escrever desalmadamente: mas escrevia versos para o Diabo ou para a Rapariga
da biciclete vermelha? Para minha vaidade ou para a salvação da rapariga que amava...?
Todos os estudos
indicavam o stress e as prioridades profissionais como causas maiores do
elevado aumento do número de divórcios, ano após ano... Mas eu não me ralava!
Por um lado não via telejornais, por outro... nós nem éramos sequer casados.
Sabia apenas que
tinha de escrever, escrever diariamente belos versos, pois o
Diabo não era parvo nenhum e queria ganhar dinheiro – de preferência muito, o
que não deixava de ser uma manifestação de grande lirismo por parte do Belzebu, tendo em conta a exiguidade do número dos que neste país, dito “de poetas”, efectivamente se dão
ao trabalho de ler versos, quanto mais desembolsar guito para os poder ler...!
Desta forma,
para avaliar a qualidade das minhas criações, tratou Belzebu de reunir o Clube
de Poetas Mortos (líricos como eu, mas com a bota entretanto batida). Assim, não só tinha
de escrever todos os dias um poema, mas tinha também de ser uma obra-prima
capaz de poder ombrear com os rigorosos padrões literários de muita e diversa gente
já morta e por isso mesmo… petulantemente consagrada! De arrasar com os nervos de
qualquer um – garanto-vos!
Mas eu todavia
estava animado por um ideal: Salvar a Rapariga da biciclete vermelha do vício
do álcool, resgatando para o mundo essa virtuosa pianista que caíra na
esparrela das Macieiras. E já agora... poder publicar, também! Mas sabem que
mais? Estava a dar baile ao Diabo! Com o frenesim dum doido, passava os dias a
rabiscar caderninhos, alheio a mais distracções que não a busca incessante de inspiração através dos chamados “paraísos artificiais”... Sim! Pois
se Dante descera aos infernos pela sua Beatriz, também eu podia muito bem ir ao
fundo da garrafa pla Rapariga da biciclete vermelha!
E como eu estava
em queda, meus amigos! Dei por mim a beber mais Macieiras que a minha musa – o que era realmente notável! Mas se isso tinha um óbvio efeito sobre
os meus estados de alma, que se tornavam perturbadoramente mais eufóricos e megalómanos...
pior se revelou a minha intensa, quase exclusiva dedicação à escrita. Deixara
de ter tempo para a nossa relação: era capaz de escrever soberbos sonetos sobre
os olhos amendoados da Rapariga da biciclete vermelha, mas era incapaz de lhe
espreitar a alma; redigia lindas odes ao seu ganchinho, mas enquanto me cingia
ao acessório estético, não percepcionava o caleidoscópio vasto das suas crises
emocionais.
E que crises
emocionais! Todos os médicos lhe diagnosticavam a mais completa cura, mas ela persistia
em queixar-se das dores: passaram-se os dias e semanas, mas tudo em vão! A
Rapariga da biciclete vermelha padecia do dedo mindinho – aquele dedo
mindinho que falhava um certo dó em semi-fusa, que fora mais tarde retalhado
numa desastrada tentativa de abertura da maldita lata de atum e em seguida
cosido em urgência com 13 pontos no Hospital de São José.
Seria tudo psicológico, uma espécie de complexo pós-traumático? De cada vez que tentava teclar, dores lancinantes, tolhiam-na... As marcas ainda
lá estavam, é certo! Mas as piores cicatrizes teimavam em sangrar-lhe, abertas
em chagas vivas, no mais profundo do seu íntimo ser. Ela adiara as provas e
deixara de tocar o piano, que agora mudo ganhava pó! Mas eu... eu nem dera por
nada, ou tomava tudo como um capricho passageiro: vivia cego de ambição – febril no tumulto de triunfar sobre o Diabo.
Que dias de pura insanidade vivia, que delírios de ebriedade! Mas hoje... hoje porém estou em crer que o
Diabo era eu! Ou que pelo menos o trazia no corpo, dirigindo-me a vontade e a
conduta para fins que de altruístas nada tinham.
Embarcara numa
aposta com Mefistófeles para salvar a rapariga da biciclete vermelha...? Embriagava-me
seguramente bem mais com miragens do que com as malditas macieiras! Ali estava ela,
definhando diariamente enquanto eu cada vez mais absorto me recolhia nos meus arabescos. Teria
deveras pactuado com o Diabo para a salvar? Com que enganos de alma me emborrachava!
Para a poupar a
mais aflições, decidira ocultar à Rapariga da biciclete vermelha o resultado e termos do
meu entretien com o Diabo. oh Cristo! Hoje percebo o erro que foi o meu silêncio: como poderia aquele anjo compreender o meu tolo optimismo, quando ela se afundava na mais sombria depressão? Como poderia ajuizar aquele ser delicado, subtil como a brisa de Maio, a grosseria do meu alheamento? Como poderia a virtuosa pianista perdoar-me os quiméricos projectos líricos, quando ela se sentia incapaz de teclar a mais simples melodia?
Não seria, face ao exposto, uma surpresa que nela fosse
crescendo um sombrio azedume e uma discreta mágoa por aquilo que só poderia
ser entendido como um crescente distanciamento meu, precisamente... precisamente na
altura em que a rapariga mais precisava de mim. Não deveria ter
sido uma surpresa. Ou pelo menos, não para quem estivesse minimamente atento
aos sinais... mas eu apenas tinha olhos para páginas em branco por preencher e
dead-lines por cumprir para o Diabo que me editaria.
Não deveria ter sido uma surpresa...
mas foi surpreendente: quando a bílis da rapariga da biciclete vermelha
explodiu de rancor, não se ouviu um grito, não se partiu um prato ou servido foi qualquer cliché temperamental. Não, nada disso! Quando cheguei a casa, franqueei a
porta e cruzei a sala... já lá não estavam o piano, a biciclete e a rapariga. A miúda partira:
o vento mudou e ela não voltou. Até hoje...
1 comentário:
finalmente um arrependimento qualquer...
Enviar um comentário